quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A descriminalização do uso de drogas


O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando o Recurso Extraordinário n. 635659, com repercussão geral, que discute a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso pessoal. O objeto do recurso é o art. 28 da Lei 11.343/2006, segundo o qual quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas será submetido às penas de advertência, prestação de serviços e medida educativa. Por não prever uma pena de prisão, muitos juristas sustentam que o uso de drogas há tempos deixou de ser um crime. De qualquer forma, o STF esta debatendo a matéria e alguns argumentos invocados pelos ministros são curiosos e merecem uma reflexão.

Segundo o Ministro Barroso, a descriminalização do uso de drogas – para ele, essa decisão deve se restringir ao uso de maconha – pode ser, em termos de política pública, uma alternativa à “guerra perdida” contra as drogas. O argumento não convence. A dificuldade em se combater um delito não pode motivar a descriminalização de condutas que a sociedade de modo geral ainda condena (pesquisa Ibope de 2014 aponta que 79% dos entrevistados eram contra a legalização da maconha). Os usuários de drogas representam uma parcela ínfima da sociedade. No entanto, grupos organizados desses usuários falam como se representassem os interesses gerais da nação e bradam aos quatro ventos que a legalização do uso de drogas é a solução para a “guerra perdida” contra o tráfico. Ora, a guerra está sendo perdida justamente porque esse usuário, aquele playboy inconsequente muito bem retratado no filme “Tropa de elite”, participa entusiasmadamente do crime financiando o tráfico. Sem usuário, não existe traficante. Simples assim! E vejam como são as coisas... Esse usuário, que boicota a guerra contra o tráfico, é o sujeito que defende a legalização do uso de drogas ao argumento da guerra perdida. Realmente, com a ajuda de maconheiros, craqueiros e cheiradores, os traficantes estão ganhando a guerra e, inclusive, já convenceram três Ministros do Supremo a se renderem.

Há outros crimes que também são difíceis de combater, como a exploração sexual de crianças e adolescentes. O perfil do criminoso e a até a colaboração dos pais são alguns dos fatores que tornam esse crime uma chaga nacional e, alguns poderiam pensar, trata-se de uma guerra perdida, afinal o tarado sexual nunca vai largar o seu vício. Sabe-se que essa prática não se combate apenas com a criminalização da conduta do agente, mas também com políticas sociais eficazes e até uma mudança cultural. Entretanto, ninguém em sã consciência diria que, em razão das dificuldades de se combater essa prática, isso seria motivo para descriminalizar o uso de crianças para satisfazer a lascívia de adultos.

Outro argumento, utilizado pelo relator, Ministro Gilmar Mendes, é que a criminalização estigmatiza o usuário, fato que comprometeria a adoção de medidas de prevenção e redução de danos. Se o estigma fosse razão suficiente para descriminalizar condutas, então o Código Penal e todas as leis penais deveriam ser abolidos, afinal a criminalização de qualquer conduta naturalmente gera um rótulo no agente. Aliás, o receio desse rótulo deveria ser um dos motivos para o sujeito não praticar a ação dita criminosa. Por outro lado, associar o estigma à dificuldade de implementar políticas públicas de prevenção e redução de danos pode ser perigoso. Um exemplo? A violência doméstica. É consabido que a prática de violência contra a mulher está associada a diversos fatores, desde o consumo de álcool e drogas até aspectos culturais de uma sociedade patriarcal e machista. Novamente, são motivações que não se combatem exclusivamente com a criminalização das condutas do agressor, mas principalmente com políticas públicas de amparo à família. Nem por isso se cogita descriminalizar a conduta de quem espanca a esposa ao argumento de que o “estigma” sobre o agressor “compromete” a adoção de medidas de prevenção e redução de danos.

Finalmente, argumenta-se que a criminalização do uso de drogas é uma clara violação à autonomia individual. Esse é um argumento válido e difícil de contestar. De fato, cada um sabe – ou deveria saber – o que é melhor para si. Como dizia meu avô, quem morre por seu gosto, acaba com o seu regalo. Se o sujeito quer se matar disparando uma arma de fogo na cabeça ou tomando uma overdose de drogas, quem sou eu para impedir? Cigarro e álcool também são drogas, causam dependência e, no caso do álcool, provocam mais danos coletivos do que, por exemplo, o uso da maconha. Por que, então, algumas drogas são lícitas e outras não? Porém, antes de liberar geral, algumas questões precisam ser respondidas.

Se o uso de drogas for permitido, seria uma contradição sem precedentes proibir o comércio: por que alguém seria proibido de produzir e vender um produto cujo consumo é lícito? É como admitir o consumo de Big Mac, mas, por se tratar de um sanduíche que causa mal à saúde, proibir o McDonald´s de vender. Não faz sentido. Outra questão é o alcance da autonomia individual. Se é verdade que cada um tem o direito de se autolesionar, por que se restringiria os meios para praticar essa autolesão? Se o sujeito pode se matar consumindo álcool ou maconha, não há razão para impedi-lo de fazê-lo usando cocaína, heroína, haxixe, drogas sintéticas, enfim qualquer droga ao sabor do cliente!

Finalmente, fala-se muito que o Estado deveria apenas desincentivar o consumo mediante campanhas de conscientização, como faz em relação ao tabaco. Essa é uma contradição difícil de superar: se as drogas causam tanto mal para o indivíduo a ponto de motivar o Estado a fazer campanhas contra o seu uso, por que diabos, então, vai se liberar o consumo?

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

I never take a shortcut (Wayne Gilchrist)


Uma das coisas mais extraordinárias que pode acontecer durante uma viagem é conhecer pessoas. O fato de estar fora do seu domicílio, em lugares às vezes exóticos, faz do viajante alguém disposto a novas experiências, desde provar a culinária local ou tentar alguns passos da dança típica até se aproximar de tipos que, na correria do dia-a-dia, talvez nunca fizessem parte da sua vida. Na viagem que fiz ao Peru, tive a oportunidade de conhecer Wayne Gilchrist, um americano de Ohio de 70 anos de idade, que me ensinou algo tão verdadeiro quanto simples.

Wayne e eu integramos um dos vários grupos de mochileiros que faz a trilha do Cânion del Colca, na região de Chivay, a 150km de Arequipa, no sul do Peru. O passeio exige fôlego: no primeiro dia, são aproximadamente seis horas de caminhada para descer e cruzar o cânion. No final da tarde, chega-se a uma hostel que fica entre os paredões do vale, isolado no meio do nada. A única lâmpada acesa fica no espaço reservado para servir a janta. Fora dali, a escuridão é total, permitindo ter uma visão rara e privilegiada do céu, com direito a enxergar a poeira cósmica da Via Láctea. No dia seguinte, a caminhada começa ainda de madrugada: são três horas para subir o paredão íngreme do cânion.

Na ida, logo depois do almoço, chegamos a uma bifurcação. Ali, o guia parou e explicou para o grupo que havia duas possibilidades: a primeira seria seguir em direção a um povoado, que é a trilha comum. A segunda seria pegar um atalho que passava ao largo desse povoado e abreviaria o percurso em aproximadamente uma hora. Dos treze integrantes do grupo, doze, inclusive eu, votaram pelo caminho mais curto. Só uma pessoa preferiu o caminho mais longo: Wayne. Aquilo me deixou intrigado, porque seria natural que Wayne, justamente por ser o mais velho do grupo, preferisse o atalho para poupar energia. Mas não! Continuamos caminhando, pelo caminho mais curto, já que o americano foi voto vencido, e eu então me aproximei desse simpático senhor para perguntar-lhe porque ele preferia seguir o caminho mais longo. Ele respondeu: “I never take a shortcut in my life” (em tradução livre: “eu nunca pego um atalho na minha vida”).

Essa resposta me deixou desconcertado e ainda mais curioso sobre a personalidade do vizinho continental. Insisti na minha dúvida e pedi para ele me explicar a razão dessa filosofia de vida. Para ele, tomar um atalho significa abrir mão de conhecer todas as coisas que o caminho mais longo pode proporcionar. “Se eu pegar um atalho, tenho a sensação de que estou perdendo algo extraordinário que está no caminho completo”, afirmou ele. Depois de ouvir essas palavras, fiquei pensando no povoado que o grupo deixou de conhecer por conta da preguiçosa escolha da maioria... Pensei também em todos os atalhos que tomei na vida convicto da minha esperteza por diminuir as distâncias e chegar mais cedo onde quer que fosse. Que tolice! O mais triste é que, não raras vezes, tomamos atalhos não apenas para encurtar distâncias, mas para evitar algum trabalho, fugir de paixões, desviar-se de pessoas no caminho ou simplesmente para contornar pequenos dissabores. O que não se percebe é que, no final das contas, estamos evitando viver ou vivendo menos intensamente, deixando de curtir situações cotidianas que, boas ou ruins, fazem parte da vida e poderiam enriquecer a nossa experiência de uma maneira extraordinária.

Segui caminhando ao lado do Wayne. À medida que ia conhecendo-o, mais fascinado ficava com a sua história. Apesar de já ter 70 anos, Wayne, com passos lentos, mas sempre firmes, acompanhava o grupo de jovens com uma vitalidade incrível. No segundo dia de caminhada, a expectativa seria subir o cânion em três horas. Wendy completou o percurso a pé em três horas e dez minutos, enquanto alguns jovens do grupo tinham optado por contratar o transporte de mulas para não precisar encarar a empreitada! Com tanta disposição, imaginei que Wayne seria um “bon vivant”, aquele tipo Zé Carioca, bem conhecido dos brasileiros, que nunca se estressa com o trabalho e só desfruta da vida. Ledo engano. Wayne me contou que sempre trabalhou além da conta, mais de oito horas por dia. “Eu tive quatro filhos ainda jovem e era autônomo, sempre precisei trabalhar muito para sustentar a família”. Num país como o Brasil, onde uma unha encravada já encoraja pessoas de caráter duvidoso e pouco afeitas ao trabalho a pretender se encostar na previdência, o exemplo do ianque é um tesouro. Porque precisou trabalhar e cuidar da família, Wayne teve poucas oportunidades para viajar na vida. Agora, aposentado, começou a empreender aventuras pelo mundo. E sozinho, já que é divorciado. Esse foi outro aspecto notável da sua figura! Sem nenhuma mágoa aparente, fez questão de frisar que a separação foi uma opção da mulher: “Ela preferiu assim, o que se pode fazer?” Por pouco não conheci esse sujeito ímpar, já que, no ano passado, ele teve complicações em decorrência de uma cirurgia no olho e quase morreu. No entanto, a vontade de viver foi maior que o medo da morte.

No final do passeio, perguntei a ele se estava muito cansado. Ele disse que sim, mas mesmo assim estava ansioso para começar outro desafio na sequência, a trilha tradicional de Machu Picchu, uma caminhada de quatro ou cinco dias.

Wayne Gilchrist, 70 anos, divorciado, pai de quatro filhos, um homem que aproveitou de verdade a sua vida dedicando-se à família e ao trabalho. Hoje, mesmo sozinho e já idoso, não tem receio de embarcar em aventuras mundo afora sem atalhos. Que bom! Não fosse esse espírito tão livre e corajoso, provavelmente eu não teria tido o privilégio de conhecer uma pessoa que, por sua simplicidade, é tão inspiradora!