quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Não existe preso santo

Considerando-se a legislação atual, é preciso fazer um esforço hercúleo para se condenar e manter alguém preso no Brasil.

O sistema penitenciário atravessa mais uma crise, com motins, rebeliões e massacres em alguns presídios brasileiros. Nessas horas, é comum surgirem aqueles discursos travestidos de humanitários contra o encarceramento em massa no país, contra o sistema opressor que só prende “ladrão de galinha” e blábláblá. Particularmente, estou saturado dessa ladainha e, conhecendo um pouco o sistema penal e penitenciário nacionais, cumpre-me esclarecer como esse sistema opressor funciona para demonstrar que a população carcerária não é gente do bem.

Primeiro fato: considerando-se a legislação atual, é preciso fazer um esforço hercúleo para se condenar e manter alguém preso no Brasil. Uma grande parte dos crimes definidos em lei têm pena máxima até 2 anos de prisão, o que os define como infrações de menor potencial ofensivo. Nesses casos, o autor do crime ou contravenção poderá fazer um acordo com o Ministério Público para não ser processado, pagando as famigeradas cestas básicas ou prestando algumas horas de serviços comunitários. Muitos crimes têm penas máximas superiores a esse patamar de dois anos. Já não são infrações de menor potencial ofensivo, mas, se a pena mínima for até 1 ano, será difícil condenar o meliante. Isso porque, apesar de denunciado, o acusado terá direito à suspensão condicional do processo e ficará sujeito a algumas condições, das quais a única efetivamente cumprida é o comparecimento no Fórum para assinar uma ficha-ponto semanal ou até mensal. Findo o prazo e cumpridas as condições o processo é extinto sem qualquer condenação. O indivíduo já praticou dois crimes, mas, nas duas situações (acordo e suspensão), continua sendo primário.

Fora dessas hipóteses, o sujeito que praticar um crime será processado e, ao final, superadas todas as chicanas garantistas e provado por A+B que foi ele quem praticou o delito, poderá até ser condenado. Vai para cadeia agora? Alto lá! Existe um entendimento consolidado de que a pena a ser aplicada deve partir sempre do mínimo estabelecido em lei. Então, apesar de a lei fixar penas altas para alguns delitos, as penas aplicadas em caso de condenação quase sempre ficam no mínimo legal. Qual é o pulo do gato? Se o réu for primário e a pena fixada na sentença condenatória for igual ou inferior a quatro anos, o regime inicial de cumprimento da pena será o aberto, que consiste basicamente em também assinar ficha-ponto no Fórum. Se o crime cometido não envolver violência ou grave ameaça, a pena pode ser convertida em prestação de serviços ou mais cestas básicas. Quer dizer, nada de prisão ainda!

Então, quando é que o “ladrão de galinha” vai ser preso? Vamos lá! Se ele subtrair a galinha sem violência ou ameaça ao legítimo dono do animal, terá praticado um furto, cuja pena é de 1 a 4 anos. Será denunciado, mas o processo ficará suspenso, durante certo período. Se, no curso dessa suspensão, o “ladrão de galinha” furtar outra galinha, o primeiro processo retomará o seu curso e será processado também pelo segundo delito. Ao final de cada processo, se for condenado, as penas somadas dos dois crimes não vão nem chegar perto de ultrapassar quatro anos. Então, serão substituídas por prestações alternativas (crime sem violência ou ameaça). Se, dentro de cinco anos contados das condenações defintivas, o “ladrão de galinha” furtar uma terceira ave, aí sim será processado e, se condenado pela terceira vez, correrá o risco de cumprir a pena inicialmente no regime semi-aberto e, finalmente, ir para a cadeia, por ser reincidente. Quanto tempo ficará preso? Bem, se a pena for de novo fixada no mínimo legal de 1 ano, ficará preso, no máximo, por 2 meses, quando já poderá progredir para o regime menos gravoso, ou seja, o aberto.

Quer dizer, o “ladrão de galinha” vai ter que cometer pelo menos três furtos em série e ainda ter o azar de ser flagrado nas três oportunidades. Isso sem contar as hipóteses de prescrição, indulto e outras tantas benesses legais que favorecem os criminosos. E, sinceramente, ainda que furtar galinha seja um crime banal, um sujeito que não consegue ficar um par de anos sem mexer no galinheiro alheio demonstra sua absoluta incapacidade de respeitar os direitos dos seus concidadãos e, por isso, só pode ter um destino, que é a prisão.

Assim como o “ladrão de galinha”, outros criminosos também só com muito custo vão parar na cadeia, como o contraventor, o cafetão, o estelionatário, o falsificador, o receptador e o corruptor de menores, só para citar alguns crimes comuns previstos no Código Penal, cujas penas mínimas igualmente não ultrapassam um ano. Enfim, só fica preso no Brasil o sujeito que comete um crime verdadeiramente grave, como o homicídio (consumado, porque tentado a pena não passa de quatro anos), roubo, extorsão mediante sequestro, estupro, tráfico de drogas, cujas penas mínimas ultrapassam quatro anos, ou é reincidente. Portanto, não me venham com essa conversa fiada de que o sistema penal só serve para oprimir pobres coitados e segregar “ladrões de galinha”. Pode até haver um ou outro condenado injustiçado, mas, no Brasil, na generalidade dos casos, não existe preso santo.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Por que o governo insiste em conservar rodovias?

Os governos brasileiros, desde a época colonial, já demonstraram à exaustão serem incompetentes para executar a imensa maioria das suas atribuições, entre as quais conservar rodovias.


Quem transita pelas rodovias brasileiras, haverá de concluir que a melhor coisa que um governo pode fazer é livrar-se das suas incumbências, transferindo-as para a iniciativa privada. Quanto menos o cidadão depender de serviços a cargo do governo, melhor.

As BR-470 e BR-282, que cruzam o estado de Santa Catarina, por exemplo, são as provas inequívocas de que o poder público é absolutamente incapaz de manter rodovias em condições mínimas de tráfego. Circular por essas rodovias e chegar íntegro ao destino, a pessoa e o veículo, não é apenas um desafio e uma aventura, mas uma singular experiência, como apostar com a morte, essa senhora que está sempre espreitando as estradas nacionais. Pilotar um Fórmula-1 deve ser tarefa fácil para os condutores de veículos, amadores ou profissionais, que ousam rodar nas BR “cuidadas” pela União. Não se trata apenas de desviar de buracos, habilidade há muito já desenvolvida pelos condutores habilitados nestas terras tupiniquins. Agora, conta-se também com troncos de árvores e pedras no caminho (literalmente), os quais são derrubados pelas forças da natureza na pista de rolamento e por lá ficam para testar a capacidade e o reflexo dos motoristas. É preciso estar atento também para adivinhar quando será a próxima curva e qual o seu ângulo e, assim, calcular a velocidade adequada para evitar que o veículo, obedecendo às implacáveis leis da física, siga reto, atravesse a outra pista e, na melhor das hipóteses, caia em um precipício do outro lado da rodovia sem se chocar com outro carro, um barraco de caldo de cana ou um transeunte. À noite, um piscar de olhos pode ser suficiente para o condutor subir no canteiro de um trevo sorrateiramente escondido na penumbra. Sob chuva, os motoristas precisam ter braço forte para segurar o volante durante as aquaplanagens. À noite e sob chuva ou neblina, o melhor a se fazer é estacionar o veículo longe da rodovia, porque as chances de a morte vencer a aposta crescem vertiginosamente, pois é quase impossível distinguir os limites entre as pistas de rolamento, os acostamentos e os barrancos.

Em comparação com as estradas cuidadas pelo estado, as rodovias sob responsabilidade da iniciativa privada, como as BR-101 e BR-116, chegam a ser um paraíso. E olha que essas estradas nem de longe se aproximam do padrão de qualidade de uma highway norte-americana ou uma autobahn alemã. Mas essas estradas pelo menos contam com pintura, placas de sinalização, camada asfáltica sem buracos, iluminação nos trechos urbanos, corte da vegetação lindeira, local para atendimento de usuários, ambulâncias, reboque, entre outras melhorias. Mas nem se almeja tanto. Um mínimo de manutenção já seria motivo de júbilo. Por exemplo, retirar as pedras e os troncos derrubados sobre a pista. Não precisa levar para muito longe, não. Colocando de ladinho no acostamento já está bom. Outra providência salutar seria cobrir as crateras das pistas de rolamento. Os buracos pequenos, desses que a gente passa por cima sem o risco de estourar o pneu e capotar o veículo, pode deixar lá. Por fim, manter uma sinalização mínima. Veja bem: não se reclama fixar placas de contagem regressiva para curvas perigosas, iluminar os trevos, colocar alertas em pontos de altos índices de acidentes ou instalar olhos-de-gato. Pintar a pista, só isso, nada mais do que isso! Também não precisa ser daquelas pinturas de primeiro mundo, que destacam os pontos de ultrapassagem, os limites entre as pistas e entres estas e os acostamentos. Basta pintar uma linha contínua separando as pistas. Não é pedir muito.

Por incrível que pareça, um governo que conseguisse manter as estradas sem crateras, livre de troncos de árvores e com delimitação segura entre as pistas de rolamento já seria louvado. Agora, se o governo não consegue fazer nem isso, não se compreende porque insiste em “cuidar” das rodovias. Não seria mais digno as autoridades responsáveis vir a público para admitir a sua absoluta incompetência para gerir essas estradas e pedir pelo amor de Deus para que a iniciativa privada assuma essa tarefa? Por que insistir no erro de tentar a todo custo executar funções para a qual se é de todo incapaz? Todo mundo já sabe disso, as autoridades só precisariam reconhecer esse fato notório. E, claro, anunciar um programa agressivo de concessão, no qual todas as rodovias, todas sem nenhuma exceção, sejam concedidas para exploração da iniciativa privada. E essa exploração deveria incluir, inclusive, a fiscalização sobre as leis de trânsito. Porque muitos riscos decorrem da irresponsabilidade de motoristas e, se a imprudência destes não é culpa do governo, a falta de fiscalização para coibir as infrações é. Assim, o empreendedor deveria receber a incumbência não só de conservar a rodovia, mas também fiscalizar o cumprimento das leis de trânsito, podendo utilizar todos os recursos tecnológicos para manter os condutores na linha, como radares e câmeras de segurança, e aplicar as multas devidas. Lógico e justo que o produto das multas, nesse caso, fique com a concessionária, justamente para custear investimentos na segurança e na educação no trânsito e estimular o rigor na fiscalização. Ao poder público remanesceria unicamente a incumbência de fiscalizar a execução do contrato de concessão, o que muito provavelmente também não fará a contento. Mas aí os males serão menores, porque há outros órgãos de controle que podem colaborar nessa tarefa, como o Ministério Público, e até mesmo a sociedade por meio de associações organizadas de consumidores.

A cobrança do pedágio certamente vai despertar a ira daqueles que pagam os seus impostos e esperam que o governo cumpra os seus deveres. Essa expectativa não é desarrazoada, mas no caso brasileiro o fato é que, mesmo pagando-se todos os impostos, o governo simplesmente não vai fazer o seu trabalho direito. Não adianta reclamar. Os governos brasileiros, desde a época colonial, já demonstraram à exaustão serem incompetentes para executar a imensa maioria das suas atribuições, entre as quais conservar rodovias. E isso vale para os governos de todas as esferas, federal, estadual e municipal, de todos os partidos e de todas as inclinações ideológicas. Não se trata de algo pontual, responsabilidade de um ministro ou secretário. Trata-se de uma incapacidade inata das autoridades brasileiras de cumprirem as suas obrigações. Ninguém escapa dessa sina. Agora, em se tratando de conservar rodovias, essa incompetência expõe a risco a vida, a integridade física e o patrimônio dos usuários (sim, custa caro recuperar pneus, rodas, molas, amortecedores...). Então, o pedágio é até uma contraprestação irrisória quando se pensa que servirá não apenas para trafegar mais tranquilo nas estradas, mas para aumentar a expectativa de vida do cidadão usuário das rodovias.