domingo, 10 de março de 2019

O planeta dos macacos é aqui

O carnaval do Rio de Janeiro foi marcado por uma tragédia familiar decorrente da morte de uma criança de três anos abandonada pelos pais em casa junto com duas irmãs também crianças. Os pais saíram para curtir o bloco de carnaval do bairro e deixaram os três filhos dormindo. Um curto-circuito no ventilador do quarto teria provocado um incêndio rapidamente. Quando resgatado por vizinhos, o garoto estava com 90% do corpo queimado, razão pela qual não resistiu aos ferimentos e faleceu no hospital. Tragédias como essas só acontecem porque, no Brasil, as crianças recebem menos proteção do que um animal.

As pessoas precisam saber que, de modo geral, os crimes contra as crianças em terras tupiniquins são punidos com penas muito brandas. Sem uma adequada punição, os adultos fazem das crianças gato e sapato. Por exemplo, o crime de abandono é punido com penas de seis meses a três anos, o que significa que o criminoso pode nem sequer ser processado, caso cumpra algumas condições, como assinar uma folhinha no Fórum periodicamente. Mesmo se for processado e condenado, o autor desse crime será punido com penas restritivas de direito, ou seja, vai apenas pagar as famigeradas cestas básicas ou prestar serviços comunitários. Se a criança abandonada for recém-nascido, a pena é inexplicavelmente menor: de seis meses a dois anos, o que enseja até transação penal, que nada mais é do que um acordo para pagar uma pena pecuniária ou prestar serviço. Pode um bandido abandonar um bebê na lata do lixo, como acontece com uma frequência chocante, e ser “punido” com um acordo? Outro crime muito comum praticado contra crianças é maus-tratos. Trata-se de um delito corriqueiro porque a pena é igualmente ridícula: dois meses a um ano ou multa. Sim, o vagabundo que judiar de uma criança indefesa pode ser punido só com uma mísera multa. Para se ter uma ideia do absurdo, se alguém maltratar um animal, a sua pena será maior, de três meses a um ano e mais a multa. Ou seja, se um infeliz descobrir que foi traído e quiser descontar a sua ira em alguém, melhor que seja em uma criança, já que chutar um bichano na rua pode lhe render uma pena mais severa. Que futuro esperar em uma sociedade que confere a um animal maior proteção do que a uma criança? A tendência é ser governada por macacos, como na ficção hollywoodiana.

Não é à toa que rotineiramente são denunciados casos de abandono e maus-tratos contra crianças. O impressionante é que o legislador não parece sensibilizado com o sofrimento dos infantes. Talvez seja assim porque criança não vota. Recorde-se que, desde 2006, a lei outorgou especial proteção para as mulheres vítimas de violência doméstica. Sem dúvida, as mulheres também sofrem esse tipo de violência e merecem tal proteção. Porém, as mulheres adultas, bem ou mal, podem se defender, pelo menos pedir socorro, ao contrário das crianças que não têm recurso algum para evitar as agressões covardes praticadas principalmente pelos próprios familiares. Aliás, enquanto as mulheres são vítimas apenas dos homens, as crianças, por vezes, são vítimas de ambos os sexos, o que aumenta a sua vulnerabilidade. São vítimas sem voz. Apanham e sofrem caladas, sozinhas. Apesar dessa constatação óbvia, até hoje as crianças não gozam de igual proteção e não há nem fumaça de leis que tornem mais severas as penas para as agressões cotidianas contra a infância. E não se está sugerindo lançar ao cárcere os pais que eventualmente corrigem os filhos com um tapa na bunda, como se pretendeu fazer por ocasião da discussão da Lei da Palmada (Lei n. 13.010/2014), afinal não se pode confundir um puxão de orelha com maus-tratos ou abandono. O que se reclama é punição rigorosa para o desprezo, a irresponsabilidade e a violência que atingem as crianças, como foi o caso dessa vítima abandonada em casa para morrer queimada, enquanto os pais estavam se divertindo na folia carnavalesca.

Há quase trinta anos aprovou-se um estatuto para a infância que deveria conferir efetiva proteção aos menores, mas que não passa de tinta no papel por não oferecer instrumentos capazes de punir com efetividade aqueles que não respeitam as garantias previstas nessa lei. Já passou muito da hora de se estabelecer rigorosas punições para os algozes das crianças, a fim de estancar as barbaridades que sofrem diuturnamente Brasil afora. Uma criança negligenciada e judiada ao longo da sua infância tende a se transformar num ser brutalizado que, na fase adulta, irá reproduzir essa mesma violência contra os seus próprios filhos, num ciclo vicioso e perverso que precisa ser interrompido com urgência. Uma sociedade que falha miseravelmente na proteção das crianças contra todas as formas de negligência e crueldade está fadada a continuar sendo uma horda de bárbaros. Pelo andar da carruagem, no futuro não será surpresa um chimpanzé reinar por estas bandas.

2 comentários:

  1. Excelente texto, e muito oportuno, diante dessa triste realidade.

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  2. Pense-se na proibição de proteção deficiente dos direitos fundamentais e se depare com a dura realidade do atual sistema de tutela da infância.

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