quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Imprensa, crime organizado e amor bandido

A Folha de São Paulo publicou uma matéria em 23-2-2019 intitulada “Favela com PCC tem menos crimes violentos, segundo estudo”, sugerindo, já no título, que a presença do crime organizado nas comunidades é sinônimo de segurança para as pessoas. Impressionante como alguns setores da imprensa adoram flertar com bandidos e servir à causa da marginalidade. Depois, são esses mesmos jornalistas que escrevem notícias sobre o aumento da violência realçadas com uma fingida indignação.

De acordo com a reportagem, o estudo aponta que as favelas dominadas pela facção criminosa PCC tiveram 12% menos crimes violentos em relação às favelas onde a bandidagem não está presente. Não se trata de nenhuma novidade. Dizer que as áreas dominadas por organizações criminosas possuem menos crimes violentos é chover no molhado. A novidade está em distorcer as causas da diminuição dessa violência. Ainda segundo a matéria, o estudo considera que a redução da violência se deve a um “modelo de negócios muito aberto e profissional” desenvolvido pelo PCC, no qual impera o que os autores chamaram de “pax monopolista”. Ora, vejam, o jornalista destaca o tráfico de drogas não como um crime hediondo, mas como um “modelo de negócio muito profissional”, e os traficantes como “empresários racionais” filiados a um “grupo”, e não bandidos integrantes de facção criminosa. Só faltou obrigar a Associação Comercial de São Paulo a admitir em seus quadros os traficantes de drogas.

É certo que a presença policial atrapalha o comércio de drogas, como aponta o estudo. Por isso, os traficantes buscam manter a violência sob controle nos seus domínios. Sem crimes violentos, a polícia não precisa entrar na favela. Chega a ser infantil apontar essa constatação óbvia como uma grande descoberta. O que o jornalista ignora ou oculta é que a tal “pax monopolista” é imposta por meio do terror contra a população. Até um chimpanzé sabe que as organizações criminosas possuem um código penal próprio que é imposto para a população sob o seu jugo. Qualquer pessoa que transgrida esse código é punido sumariamente com torturas, mutilações ou morte. É assim que as organizações criminosas agem para garantir que todo mundo ande na linha sob os seus domínios, afinal quem vai querer perder uma mão por furtar uma bicicleta? Percebam que o modo de agir das facções criminosas, no sentido de punir severamente qualquer transgressor do código de conduta da organização, confirma a tese de que a certeza de uma punição rígida é um componente fundamental para inibir a prática de crimes. Ocorre que o tipo de jornalista que defende o “modelo de negócios” das organizações criminosas é o primeiro a se insurgir contra qualquer política que vise recrudescer o combate a esses criminosos por meio do aumento das penas e estabelecimento de regras mais rígidas para o seu cumprimento.

É interessante a matéria destacar a expressão “pax”, que remete claramente à conhecida “pax romana”, período histórico do Império Romano durante o qual os romanos garantiam o controle das regiões conquistadas por meio da imposição da cultura e dos valores de Roma e, fundamentalmente, pelo uso da força para conter rebeliões. Em outras palavras, a “pax romana” não foi conquistada como decorrência natural de um “modelo de negócios”, mas sim pelo uso da força bruta das legiões de exércitos romanos. Ou seja, os romanos ameaçavam empregar a força e a violência para assegurar a paz e, assim, viabilizar os negócios e a prosperidade do império. Exatamente como fazem as organizações criminosas, que empregam o terror contra a população para manter a “paz” e, assim, garantir a prosperidade dos seus negócios escusos. Simples assim.

Eis a razão porque a violência é maior nas áreas controladas pelo Estado do que naquelas controladas por facções criminosas. Ora, qualquer um que pudesse reinar absoluto no seu bairro, instituir um código próprio de conduta e montar um esquadrão da morte com fuzis e metralhadoras para o fim de estabelecer um tribunal de exceção para julgar e guilhotinar sumariamente os suspeitos de qualquer transgressão, com certeza também conseguiria estabelecer uma “pax” local. Mas o Estado tem que agir pautado pelas garantias e liberdades individuais, em especial o devido processo legal, e não pelo terror.

Combater a violência num estado democrático de direito é mais difícil mesmo. Conferir ao crime organizado contornos de uma empresa lícita que age de modo mais eficiente do que a polícia para garantir a paz e a segurança nas favelas é uma distorção tão obscena que só pode ser explicada por uma paixão cega pelo criminoso, um tipo de amor bandido alimentado por uma doença mental incorrigível do seu autor, quem sabe até um desejo perverso de fazer parte do mundo da criminalidade. Quem acha mais seguro viver nas favelas dominadas pelo PCC deveria se mudar para uma dessas comunidades. Assim pode ficar mais próximo dos seus amores.

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