domingo, 24 de março de 2019
Temer e o cachorro que come ovelha
Os peões das estâncias gaúchas costumam dizer que “cachorro que come ovelha, só matando”, dado que esse é um vício incorrigível. Por mais que se castigue o animal, na primeira oportunidade, ele vai de novo saciar seu desejo com essa iguaria. O corrupto, tal qual o cachorro que come ovelha, é aquele tipo de criminoso inveterado, obcecado por fraudar a administração pública e com desejo insaciável de assaltar os cofres públicos. Como no Brasil não há pena de morte, a única solução para prevenir casos de corrupção consiste em prender os corruptos e mantê-los presos o máximo de tempo que for possível. Daí porque são absolutamente acertadas as decisões como a do juiz que decretou a prisão do ex-presidente Michel Temer e de alguns dos seus asseclas, entre os quais o ex-ministro e ex-governador do Rio de Janeiro Moreira Franco (agora, todos os ex-governadores fluminense que ainda estão vivos já foram presos, um recorde incrível).
Após a prisão do ex-presidente, os seus aliados (os que ainda estão soltos), advogados e setores da imprensa se apressaram em dizer que a medida era absurda e sem fundamento; que não há provas nem condenação; que se vive um estado policialesco; que a decisão tinha cunho político, entre outras bobagens histéricas. Alguns chegaram ao ponto de anunciar uma crise institucional entre os poderes e claro que não explicaram que diabos tem a ver a decisão do juiz federal do Rio de Janeiro, a pedido dos procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, e os poderes constituídos em Brasília. É sempre assim: quando se prende alguém com colarinho branco, tenta-se logo achincalhar o juiz e os membros do Ministério Público e alardear um imaginário risco a tal governabilidade. Curioso que essa indignação não se costuma notar enquanto essa mesma Justiça está ocupada prendendo a patuleia.
Apesar do sucesso da operação Lava-Jato, ainda é um tabu prender pessoas ricas, poderosas e bem vestidas. Em uma autêntica república democrática, as prisões dessas pessoas deveria ser algo natural, decorrente da pura e simples aplicação do direito. No Brasil, deveria ser até esperado, dado o nível endêmico da corrupção no país. Havendo fundadas suspeitas de terem praticado crimes graves e risco à ordem pública, nada mais natural do que prender os criminosos. Se os ilustres bandidos entendem que a medida é injusta, recorrem da decisão. E se algum tribunal concordar com eles, as suas prisões serão revogadas. E a vida segue. Não é exatamente isso que fazem os criminosos pobres que são presos rotineiramente pela Justiça? Alguns conseguem a liberdade, outros não. Mas em nenhum caso vejo advogados ou jornalistas denunciando nas redes sociais o fim do mundo.
A prisão de Michel Temer não teve nada de arbitrária nem representa o fim dos tempos. Para entender os motivos da sua prisão, o interessado tem que ler a decisão que a decretou. Mas não apenas a parte final, na qual consta a ordem. É preciso deixar a preguiça e as paixões partidárias de lado e ler por inteiro as quase cinquenta páginas nas quais foram expostos didaticamente os motivos de fato e de direito que justificaram a medida. Neste específico inquérito (há outros, diga-se de passagem), Michel Temer é suspeito de chefiar uma organização criminosa responsável por desviar milhões de reais do contrato de construção da usina nuclear Angra III. Para isso, utilizou-se de empresas de fachada controladas pelo Coronel Lima, amigo e homem de confiança do ex-presidente. Parte da propina recebida serviu para custear as despesas da reforma da casa de uma filha do ex-presidente, na ordem de R$ 1.200.000,00, pagas em dinheiro vivo. Também apurou-se que quase vinte milhões de reais foram desviados para a PDA Projetos e Direção Arquitetônica Ltda, uma empresa com capital de apenas R$ 500,00, nenhum empregado e cujos sócios são, de novo, o Coronel Lima e a sua esposa, ou seja, uma empresa fantasma. Tais fatos foram relatados por um delator e comprovados por testemunhas e uma miríade de documentos apreendidos, como extratos de ligações telefônicas, mensagens eletrônicas, notas fiscais, comprovantes de transferências bancárias, planilhas, etc. etc. etc. Está tudo lá na decisão que decretou a prisão do ex-presidente: provas do crime e indícios mais do que suficientes da autoria.
Considerando-se a gravidade dos delitos, a liberdade dos suspeitos representa sim um risco evidente à ordem pública, em especial pela probabilidade concreta de reiteração dos delitos. Ou alguém acha que essa organização criminosa, após o término do mandato do ex-presidente, parou de operar? O sujeito é suspeito de ter passado mais de vinte anos praticando corrupção e agora alguém sinceramente acha que ele vai parar sem mais nem menos? Tal como o cachorro que come ovelha, não perde o vício nunca. E mais: vai empreender todos os esforços para impedir que a Justiça o alcance. O fato de não mais exercer o cargo não elimina o seu poder. Mesmo sem mandato, um ex-presidente continua tendo conexões políticas e influências partidárias. É óbvio que, enquanto estiver solto, vai continuar chefiando a sua organização criminosa e cometendo os crimes a que estava habituado, até porque a obra de Angra III ainda não terminou. Portanto, é a sua liberdade que põe em xeque a estabilidade institucional e a governabilidade de um país, e não a sua prisão.
Os jornalistas e especialmente os ministros dos Tribunais Superiores precisam entender que a corrupção é um crime grave, não apenas porque desvia os recursos que deveriam ser empregados para o bem comum, mas principalmente porque desestabiliza as organizações públicas e compromete o regular funcionamento dos serviços que deveriam ser prestados aos cidadãos, fazendo com que o estado perca o controle sobre a administração dos direitos, dos interesses e das liberdades, resultando nisso que se vê por aí, ou seja, uma esculhambação generalizada do tecido social, isso sim uma ameaça ao próprio estado de direito. Daí porque o combate à corrupção deve seguir o lema da tolerância zero, punindo-se com rigor desde os pequenos desvios até os mais sofisticados esquemas de malversação dos recursos públicos. E o único remédio é manter o corrupto preso, porque, se deixar o cachorro solto, ele vai continuar comendo as ovelhas até não sobrar nenhuma para contar estória.
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