quarta-feira, 7 de maio de 2014

A (in)justiça com as próprias mãos




Foi enterrada ontem a mulher que, no último sábado, foi espancada por populares no Guarujá, litoral de São Paulo, por ser suspeita de sequestrar crianças e praticar rituais de magia negra. Na páscoa, um casal de turistas, que havia pichado uma pedra em uma praia também no Guarujá, teve o corpo inteiro pichado por banhistas revoltados com a ação dos vândalos contra a natureza. Igualmente, larápios têm sido amarrados a postes para execração pública.

Parece que fazer justiça com as próprias mãos caiu no gosto do povo brasileiro. A justificativa para a ação dos populares teria origem na sensação de impunidade que permeia a sociedade decorrente da incapacidade de o Estado investigar, processar e punir os transgressores da lei. Esse fato é inegável. Todavia, a pretensão de cada um do povo assumir as funções do Estado não resolve o problema. E aqui não se está condenando aquele que, diante de uma agressão, reage imediatamente em legítima defesa. Essa defesa, como a expressão sugere, é legítima. O problema é quando qualquer pessoa resolve fazer as vezes de delegado, de promotor e de juiz ao mesmo tempo para aplicar a lei ao seu bel prazer e ao melhor estilo “olho por olho, dente por dente”.

Essa atitude selvagem de fazer justiça com as próprias mãos simboliza o retorno aos tempos bárbaros. E vejam até onde pode nos levar a lógica desses justiceiros. A mulher linchada no Guarujá era acusada de sequestrar crianças, um crime tipificado no código penal. Todos os que participaram do espancamento são, em tese, suspeitos da prática do crime de homicídio ou, no mínimo, lesão corporal seguida de morte, ambos crimes também tipificados no código penal. Logo, os familiares e amigos da vítima, convencidos da sua inocência, poderiam também fazer justiça com as próprias mãos submetendo os algozes ao castigo que melhor lhes aprouver. E, depois, aqueles que achassem esse castigo exagerado ou injusto, poderiam ficar indignados e revidar aplicando outro castigo nos novos suspeitos... Fácil perceber a bola de neve se formando. Pelo andar da carruagem, em breve quem estacionar em local proibido corre o risco de levar uns bons sopapos dos novos paladinos da justiça.

O mais triste de tudo é observar que muitos desses justiceiros devem ser aquele típico brasileiro que ostenta orgulhosamente a malandragem como uma virtude. O famigerado “jeitinho brasileiro” é apenas um eufemismo para uma flagrante transgressão da lei e da ordem. Se bem pensado, um pouco da ineficiência do Estado se deve justamente a esse estúpido hábito do brasileiro de simplesmente não respeitar regras elementares de convivência social, já que é praticamente impossível reprimir tantas violações cotidianas da lei. Não duvido que, se fosse aplicada a lei a ferro e fogo, haveria mais brasileiros presos do que soltos...

A impunidade incomoda a cidadão de bem. A ineficiência frustra a expectativa de quem clama por justiça. Ao invés de empregar a energia que emerge desse incômodo e dessa frustração para fazer justiça com as próprias mãos, cada potencial justiceiro deveria canalizar essa energia para uma reflexão individual, a fim de avaliar o quanto ele próprio, com seu jeitinho, contribui para esse estado de coisas e o quanto ele pode efetivamente colaborar com Estado para a construção de uma sociedade mais ordeira e harmônica.

Leandro Govinda

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