quarta-feira, 21 de maio de 2014

Sobre saqueadores e bundas-moles



As pessoas, em geral, têm um ótimo conceito de si próprias. O povo brasileiro, enquanto povo, também tem um ótimo conceito de si próprio e tende a projetar no outro a razão de todas as mazelas que assolam o país. Por isso, 92% dos brasileiros acham que há racismo no país, mas só 1,3% se considera racista (dados preliminares de uma pesquisa realizada pelo instituto Data Popular). Alguma coisa está errada nessa conta ou o racismo, no Brasil, deve ser praticado por estrangeiros...

Outro exemplo da diferença gritante entre o mito e a realidade pode ser observado nos recentes episódios de saques a lojas e supermercados nos estados da Bahia e de Pernambuco. A certeza de que a polícia estava mesmo em greve incutiu em muitas pessoas a ideia de tirar proveito da situação para renovar toda a linha branca da casa, trocar a TV (Copa do Mundo está chegando e nada melhor do que ver os jogos em um telão!!!) e encher a despensa! As cenas são deprimentes: pessoas transportando caixas e eletrodomésticos nas costas, em carrinhos de construção, na garupa de motos, nos porta-malas dos carros e onde mais fosse possível.

Não adianta tentar encobrir a realidade e dizer que entre os saqueadores só havia bandidos, entendidos estes como pessoas dedicadas a atividades criminosas. Havia também pessoas comuns do povo que, ordinariamente, não se enquadram no rótulo de criminosos, mas que, diante da chance de obter uma vantagem indevida sem o risco de serem responsabilizados, não tiveram dúvidas em participar da onda de saques. Não há diferença entre o bandido comum e esse malandro de ocasião, afinal ou a pessoa é honesta ou não é. Se é “honesta” só porque a polícia está vigiando, então, na verdade, trata-se de um marginal enrustido. E bunda-mole, porque não age regularmente desse modo apenas porque tem medo de ser preso. Prova dessa covardia é que, dias depois, quando a polícia divulgou que utilizaria as imagens gravadas nas ruas para identificar os saqueadores, muitos resolveram abandonar a res furtiva nas ruas para não serem flagrados na posse do produto do crime.

No Brasil, há essa tendência de mascarar a realidade e ocultar uma verdade incômoda: a frouxidão moral do povo, traduzida no “jeitinho brasileiro”, que, ao fim e ao cabo, é a raiz dos males que acometem a sociedade. O brasileiro precisa parar de louvar uma retidão ética que não existe e assumir de uma vez por todas a sua responsabilidade pela esculhambação geral decorrente dessa malandragem cotidiana. Enquanto esse “jeitinho” for encarado como uma virtude e não um desvio de caráter, não há perspectiva de mudança.


Leandro Govinda

quarta-feira, 7 de maio de 2014

A (in)justiça com as próprias mãos




Foi enterrada ontem a mulher que, no último sábado, foi espancada por populares no Guarujá, litoral de São Paulo, por ser suspeita de sequestrar crianças e praticar rituais de magia negra. Na páscoa, um casal de turistas, que havia pichado uma pedra em uma praia também no Guarujá, teve o corpo inteiro pichado por banhistas revoltados com a ação dos vândalos contra a natureza. Igualmente, larápios têm sido amarrados a postes para execração pública.

Parece que fazer justiça com as próprias mãos caiu no gosto do povo brasileiro. A justificativa para a ação dos populares teria origem na sensação de impunidade que permeia a sociedade decorrente da incapacidade de o Estado investigar, processar e punir os transgressores da lei. Esse fato é inegável. Todavia, a pretensão de cada um do povo assumir as funções do Estado não resolve o problema. E aqui não se está condenando aquele que, diante de uma agressão, reage imediatamente em legítima defesa. Essa defesa, como a expressão sugere, é legítima. O problema é quando qualquer pessoa resolve fazer as vezes de delegado, de promotor e de juiz ao mesmo tempo para aplicar a lei ao seu bel prazer e ao melhor estilo “olho por olho, dente por dente”.

Essa atitude selvagem de fazer justiça com as próprias mãos simboliza o retorno aos tempos bárbaros. E vejam até onde pode nos levar a lógica desses justiceiros. A mulher linchada no Guarujá era acusada de sequestrar crianças, um crime tipificado no código penal. Todos os que participaram do espancamento são, em tese, suspeitos da prática do crime de homicídio ou, no mínimo, lesão corporal seguida de morte, ambos crimes também tipificados no código penal. Logo, os familiares e amigos da vítima, convencidos da sua inocência, poderiam também fazer justiça com as próprias mãos submetendo os algozes ao castigo que melhor lhes aprouver. E, depois, aqueles que achassem esse castigo exagerado ou injusto, poderiam ficar indignados e revidar aplicando outro castigo nos novos suspeitos... Fácil perceber a bola de neve se formando. Pelo andar da carruagem, em breve quem estacionar em local proibido corre o risco de levar uns bons sopapos dos novos paladinos da justiça.

O mais triste de tudo é observar que muitos desses justiceiros devem ser aquele típico brasileiro que ostenta orgulhosamente a malandragem como uma virtude. O famigerado “jeitinho brasileiro” é apenas um eufemismo para uma flagrante transgressão da lei e da ordem. Se bem pensado, um pouco da ineficiência do Estado se deve justamente a esse estúpido hábito do brasileiro de simplesmente não respeitar regras elementares de convivência social, já que é praticamente impossível reprimir tantas violações cotidianas da lei. Não duvido que, se fosse aplicada a lei a ferro e fogo, haveria mais brasileiros presos do que soltos...

A impunidade incomoda a cidadão de bem. A ineficiência frustra a expectativa de quem clama por justiça. Ao invés de empregar a energia que emerge desse incômodo e dessa frustração para fazer justiça com as próprias mãos, cada potencial justiceiro deveria canalizar essa energia para uma reflexão individual, a fim de avaliar o quanto ele próprio, com seu jeitinho, contribui para esse estado de coisas e o quanto ele pode efetivamente colaborar com Estado para a construção de uma sociedade mais ordeira e harmônica.

Leandro Govinda