quarta-feira, 22 de abril de 2015

A raposa cuidando do galinheiro




A operação Zelotes da Polícia Federal apura fraudes praticadas no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), órgão do Ministério da Fazenda com atribuição para julgar os recursos administrativos dos contribuintes. De acordo com as investigações, grandes empresas são suspeitas de pagarem propinas aos julgadores para votarem no sentido de anular as autuações lavradas por Auditores-Fiscais. O prejuízo causado aos cofres públicos pode chegar a 19 bilhões de reais. Isso representa três vezes mais do que as perdas provocadas pela corrupção na Petrobrás. O escândalo é uma ótima oportunidade para se pensar sobre a utilidade e conveniência de se manter um Conselho dessa natureza.

 

Como é cediço, o ato administrativo goza de presunção de legalidade, ou seja, presume-se que foi praticado dentro dos estreitos limites fixados pela Lei. No entanto, está claro que, eventualmente, equívocos podem ser cometidos pelos agentes públicos, seja por ignorância, seja por desleixo, seja por má-fé. A ideia de se instituir órgãos revisores dos atos administrativos decorre do interesse da Administração Pública em corrigir os erros praticados por seus próprios agentes. Portanto, trata-se de defender diretamente um interesse da Administração. Só por reflexo é que se tutela o interesse do administrado.

 

No Ministério da Fazenda, as Delegacias da Receita Federal de Julgamento (DRJ) são incumbidas de julgar as impugnações administrativas aos lançamentos fiscais, realizando justamente esse trabalho de revisão dos atos administrativos praticados pelos agentes do Fisco. O CARF, por sua vez, tem a atribuição de julgar os recursos interpostos contra os acórdãos das turmas das DRJs. Ou seja, o CARF funciona como órgão revisor da revisão. Ora, se já existe um órgão incumbido de controlar a legalidade dos lançamentos fiscais e que, até onde se saiba, desempenha a contento essa missão, qual é o fundamento para se criar uma segunda instância de revisão dos atos administrativos? Há aí uma evidente e desnecessária sobreposição de atribuições, um atentado ao princípio da eficiência que deve pautar a Administração Pública. E mais: se a revisão dos atos administrativos é realizada no interesse da própria Administração, como é que se admite que esse segundo órgão seja composto também por representantes dos devedores da Fazenda? Dar poder para os próprios contribuintes julgarem as suas autuações é como colocar a raposa para cuidar do galinheiro. Não faz nenhum sentido! Ainda mais considerando-se que o julgamento na esfera administrativa não é definitivo, porquanto remanesce para o contribuinte o recurso ao Poder Judiciário para anular o lançamento fiscal.

 

A verdade, que todo mundo sabe, é que o recurso ao CARF só tem uma finalidade: protelar a cobrança do crédito tributário, uma vez que mantém suspensa a sua exigibilidade. Enquanto o recurso “dorme” nos escaninhos do CARF, a Fazenda Pública é impedida de tomar as providências para efetuar a cobrança forçada desse crédito, mediante ajuizamento da execução fiscal. Eis o único sentido da manutenção de um órgão como o CARF: dar tempo e fôlego para os grandes devedores da Fazenda Pública. O escândalo revelado pela operação Zelotes sugere que já passou da hora de se propor a extinção do CARF, um órgão que presta homenagem à burocracia e à ineficiência da Administração Pública.

 

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os delírios no debate sobre a redução da maioridade penal



O Congresso Nacional está discutindo (uma vez mais...) a proposta de emenda constitucional para reduzir a maioridade penal. Nesse debate, duas questões se misturam inadvertidamente e deveriam ser destacadas, a fim de permitir uma compreensão melhor do assunto em voga.

 

A primeira questão é saber se o menor de 18 anos tem consciência potencial da ilicitude dos seus atos e, por esse motivo, pode ser responsabilizado. Nisso consiste a imputabilidade penal: a atribuição de responsabilidade penal para todo aquele que pratica um crime consciente do caráter ilícito dessa conduta. Ser imputável significa, portanto, ser capaz de receber uma determinada sanção pela prática de um delito. A Constituição Federal, reproduzindo um dispositivo do Código Penal de 1940 (art. 27), garante que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis (art. 228). A impressão que se tem é que os menores, no Brasil, não podem ser responsabilizados pela prática de atos criminosos. Trata-se de uma ideia absolutamente equivocada. O erro é reforçado pela opção legislativa de substituir algumas expressões associadas a bandidos por outras, digamos, politicamente corretas, na vã tentativa de evitar que o jovem seja rotulado pela sociedade como um deliquente. Assim, o adolescente não comete crime, mas “ato infracional”; não está sujeito à pena, mas a “medidas socioeducativas”; não pode ser preso em flagrante, mas tão somente “apreendido”; e não está sujeito à pena privativa de liberdade, no máximo “internação“.

 

Apesar de o dispositivo constitucional dizer que os menores são inimputáveis, a verdade é que, desde os 12 anos, o sujeito que comete um crime pode (e deve) sim ser responsabilizado e punido por esse ato. Portanto, sob esse prisma, a primeira questão está superada, afinal se o menor pode ser responsabilizado, inclusive com a privação da sua liberdade, então rigorosamente ele é imputável. Isso significa que ele tem consciência da ilicitude do seu ato e deve responder por isso. Apenas essa punição não é a mesma aplicada aos adultos, considerando-se que o adolescente é ainda um indivíduo em formação. Eis então a segunda questão: será que aplicar ao adolescente as mesmas sanções previstas para os adultos diminuirá a violência praticada pelos menores? Esse é o ponto central do debate.

 

A princípio, não vejo problema em aplicar ao adolescente as sanções penais previstas para adultos. Ora, se a lei permite que o sujeito, desde os 16 anos, trabalhe, case e vote, então parece claro que se reconhece nele uma maturidade para responder por seus atos como um adulto. Porém, tenho a impressão de que essa proposta não resolverá o problema da criminalidade juvenil por duas razões tão elementares quanto óbvias.

 

Primeiro, porque a aplicação da lei penal aos adultos exige a observância a um rígido, lento e tormentoso processo penal, recheado de formalismos e recursos e sustentado por teorias mirabolantes e fantasiosas que dificultam sobremaneira a efetiva punição do criminoso. No Brasil, lamentavelmente, o bandido, a partir do instante em que é denunciado até a execução da pena, se transforma, como que por um milagre, em uma "vítima do sistema" e recebe do próprio Estado uma proteção que o torna quase intangível aos órgãos de persecução penal. É muito mais fácil e rápido impor uma medida socioeducativa a um adolescente do que uma pena de prisão a um adulto. Supor que estender aos menores a legislação penal aplicável aos adultos irá conter a violência deles é ignorar a realidade do processo penal brasileiro. Ora, se a lei penal comum não diminui o ímpeto criminoso de adultos, por que diabos haveria de ter esse efeito com os adolescentes?

 

A segunda razão é ainda mais gritante: a violência praticada por adolescentes cresce pelo mesmo motivo que faz aumentar a violência praticada por adultos, ou seja, a certeza da impunidade. As sanções previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) seriam suficientes para combater a violência dos jovens. A propósito, essas sanções, às vezes, podem ser até mais rigorosas. Se um adulto cometer um homicídio simples, por exemplo, muito provavelmente será condenado à pena mínima de 6 anos de prisão, iniciando o cumprimento dessa reprimenda no regime semiaberto (que, diga-se de passagem, só existe no papel) e, após um ano, já pode progredir para o regime aberto (que, na prática, consiste em assinar uma ficha de presença no Fórum). O adolescente que cometer esse mesmo delito poderá ser internado (leia-se: privado da sua liberdade) por até 3 anos, sem progressão de regime. Mais do que punir, as sanções previstas no ECA seriam o bastante para regenerar o adolescente em conflito com a lei, pois há previsão de escolarização e profissionalização compulsórias, tudo sob a devida orientação e acompanhamento de profissionais capacitados para esse fim.

 

A desgraça é que até hoje, passados mais de 20 anos desde a promulgação desse estatuto, as suas disposições nunca saíram do papel. Na imensa maioria das cidades brasileiras, não há programas estatais minimamente eficientes nem instituições públicas adequadas para aplicação dessas medidas. Por isso os jovens marginais cometem delitos sem cerimônia: sabem que, tal como os adultos, ficarão impunes, não porque a lei os trate como irresponsáveis, mas simplesmente porque o Estado não aplica a lei especial a eles, do mesmo modo que não aplica a lei comum aos adultos.

 

Uma lei penal mais severa até pode contribuir para diminuir a sanha de um criminoso, mas desde que seja efetivamente aplicada. Daí porque apenas definir que os menores estarão sujeitos à mesma lei dos adultos não trará nenhum resultado para o combate à criminalidade juvenil, se os adolescentes continuarem convictos de que não serão punidos. O arcabouço legislativo atualmente vigente já permite responsabilizar os adolescentes pelos crimes que cometem. Apenas essa lei não é aplicada, como de resto não são aplicadas outras tantas leis que vigoram no país. Por isso, os congressistas, os órgãos de persecução penal, os defensores dos direitos humanos e a sociedade deveriam estar mais preocupados em garantir a efetiva aplicação das leis existentes e menos com alterações legislativas que, no atual contexto, serão inócuas.