quinta-feira, 10 de setembro de 2015

I never take a shortcut (Wayne Gilchrist)


Uma das coisas mais extraordinárias que pode acontecer durante uma viagem é conhecer pessoas. O fato de estar fora do seu domicílio, em lugares às vezes exóticos, faz do viajante alguém disposto a novas experiências, desde provar a culinária local ou tentar alguns passos da dança típica até se aproximar de tipos que, na correria do dia-a-dia, talvez nunca fizessem parte da sua vida. Na viagem que fiz ao Peru, tive a oportunidade de conhecer Wayne Gilchrist, um americano de Ohio de 70 anos de idade, que me ensinou algo tão verdadeiro quanto simples.

Wayne e eu integramos um dos vários grupos de mochileiros que faz a trilha do Cânion del Colca, na região de Chivay, a 150km de Arequipa, no sul do Peru. O passeio exige fôlego: no primeiro dia, são aproximadamente seis horas de caminhada para descer e cruzar o cânion. No final da tarde, chega-se a uma hostel que fica entre os paredões do vale, isolado no meio do nada. A única lâmpada acesa fica no espaço reservado para servir a janta. Fora dali, a escuridão é total, permitindo ter uma visão rara e privilegiada do céu, com direito a enxergar a poeira cósmica da Via Láctea. No dia seguinte, a caminhada começa ainda de madrugada: são três horas para subir o paredão íngreme do cânion.

Na ida, logo depois do almoço, chegamos a uma bifurcação. Ali, o guia parou e explicou para o grupo que havia duas possibilidades: a primeira seria seguir em direção a um povoado, que é a trilha comum. A segunda seria pegar um atalho que passava ao largo desse povoado e abreviaria o percurso em aproximadamente uma hora. Dos treze integrantes do grupo, doze, inclusive eu, votaram pelo caminho mais curto. Só uma pessoa preferiu o caminho mais longo: Wayne. Aquilo me deixou intrigado, porque seria natural que Wayne, justamente por ser o mais velho do grupo, preferisse o atalho para poupar energia. Mas não! Continuamos caminhando, pelo caminho mais curto, já que o americano foi voto vencido, e eu então me aproximei desse simpático senhor para perguntar-lhe porque ele preferia seguir o caminho mais longo. Ele respondeu: “I never take a shortcut in my life” (em tradução livre: “eu nunca pego um atalho na minha vida”).

Essa resposta me deixou desconcertado e ainda mais curioso sobre a personalidade do vizinho continental. Insisti na minha dúvida e pedi para ele me explicar a razão dessa filosofia de vida. Para ele, tomar um atalho significa abrir mão de conhecer todas as coisas que o caminho mais longo pode proporcionar. “Se eu pegar um atalho, tenho a sensação de que estou perdendo algo extraordinário que está no caminho completo”, afirmou ele. Depois de ouvir essas palavras, fiquei pensando no povoado que o grupo deixou de conhecer por conta da preguiçosa escolha da maioria... Pensei também em todos os atalhos que tomei na vida convicto da minha esperteza por diminuir as distâncias e chegar mais cedo onde quer que fosse. Que tolice! O mais triste é que, não raras vezes, tomamos atalhos não apenas para encurtar distâncias, mas para evitar algum trabalho, fugir de paixões, desviar-se de pessoas no caminho ou simplesmente para contornar pequenos dissabores. O que não se percebe é que, no final das contas, estamos evitando viver ou vivendo menos intensamente, deixando de curtir situações cotidianas que, boas ou ruins, fazem parte da vida e poderiam enriquecer a nossa experiência de uma maneira extraordinária.

Segui caminhando ao lado do Wayne. À medida que ia conhecendo-o, mais fascinado ficava com a sua história. Apesar de já ter 70 anos, Wayne, com passos lentos, mas sempre firmes, acompanhava o grupo de jovens com uma vitalidade incrível. No segundo dia de caminhada, a expectativa seria subir o cânion em três horas. Wendy completou o percurso a pé em três horas e dez minutos, enquanto alguns jovens do grupo tinham optado por contratar o transporte de mulas para não precisar encarar a empreitada! Com tanta disposição, imaginei que Wayne seria um “bon vivant”, aquele tipo Zé Carioca, bem conhecido dos brasileiros, que nunca se estressa com o trabalho e só desfruta da vida. Ledo engano. Wayne me contou que sempre trabalhou além da conta, mais de oito horas por dia. “Eu tive quatro filhos ainda jovem e era autônomo, sempre precisei trabalhar muito para sustentar a família”. Num país como o Brasil, onde uma unha encravada já encoraja pessoas de caráter duvidoso e pouco afeitas ao trabalho a pretender se encostar na previdência, o exemplo do ianque é um tesouro. Porque precisou trabalhar e cuidar da família, Wayne teve poucas oportunidades para viajar na vida. Agora, aposentado, começou a empreender aventuras pelo mundo. E sozinho, já que é divorciado. Esse foi outro aspecto notável da sua figura! Sem nenhuma mágoa aparente, fez questão de frisar que a separação foi uma opção da mulher: “Ela preferiu assim, o que se pode fazer?” Por pouco não conheci esse sujeito ímpar, já que, no ano passado, ele teve complicações em decorrência de uma cirurgia no olho e quase morreu. No entanto, a vontade de viver foi maior que o medo da morte.

No final do passeio, perguntei a ele se estava muito cansado. Ele disse que sim, mas mesmo assim estava ansioso para começar outro desafio na sequência, a trilha tradicional de Machu Picchu, uma caminhada de quatro ou cinco dias.

Wayne Gilchrist, 70 anos, divorciado, pai de quatro filhos, um homem que aproveitou de verdade a sua vida dedicando-se à família e ao trabalho. Hoje, mesmo sozinho e já idoso, não tem receio de embarcar em aventuras mundo afora sem atalhos. Que bom! Não fosse esse espírito tão livre e corajoso, provavelmente eu não teria tido o privilégio de conhecer uma pessoa que, por sua simplicidade, é tão inspiradora!

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