Considerando-se a legislação atual, é preciso fazer um esforço hercúleo para se condenar e manter alguém preso no Brasil.
O sistema penitenciário atravessa mais uma crise, com motins, rebeliões e massacres em alguns presídios brasileiros. Nessas horas, é comum surgirem aqueles discursos travestidos de humanitários contra o encarceramento em massa no país, contra o sistema opressor que só prende “ladrão de galinha” e blábláblá. Particularmente, estou saturado dessa ladainha e, conhecendo um pouco o sistema penal e penitenciário nacionais, cumpre-me esclarecer como esse sistema opressor funciona para demonstrar que a população carcerária não é gente do bem.
Primeiro fato: considerando-se a legislação atual, é preciso fazer um esforço hercúleo para se condenar e manter alguém preso no Brasil. Uma grande parte dos crimes definidos em lei têm pena máxima até 2 anos de prisão, o que os define como infrações de menor potencial ofensivo. Nesses casos, o autor do crime ou contravenção poderá fazer um acordo com o Ministério Público para não ser processado, pagando as famigeradas cestas básicas ou prestando algumas horas de serviços comunitários. Muitos crimes têm penas máximas superiores a esse patamar de dois anos. Já não são infrações de menor potencial ofensivo, mas, se a pena mínima for até 1 ano, será difícil condenar o meliante. Isso porque, apesar de denunciado, o acusado terá direito à suspensão condicional do processo e ficará sujeito a algumas condições, das quais a única efetivamente cumprida é o comparecimento no Fórum para assinar uma ficha-ponto semanal ou até mensal. Findo o prazo e cumpridas as condições o processo é extinto sem qualquer condenação. O indivíduo já praticou dois crimes, mas, nas duas situações (acordo e suspensão), continua sendo primário.
Fora dessas hipóteses, o sujeito que praticar um crime será processado e, ao final, superadas todas as chicanas garantistas e provado por A+B que foi ele quem praticou o delito, poderá até ser condenado. Vai para cadeia agora? Alto lá! Existe um entendimento consolidado de que a pena a ser aplicada deve partir sempre do mínimo estabelecido em lei. Então, apesar de a lei fixar penas altas para alguns delitos, as penas aplicadas em caso de condenação quase sempre ficam no mínimo legal. Qual é o pulo do gato? Se o réu for primário e a pena fixada na sentença condenatória for igual ou inferior a quatro anos, o regime inicial de cumprimento da pena será o aberto, que consiste basicamente em também assinar ficha-ponto no Fórum. Se o crime cometido não envolver violência ou grave ameaça, a pena pode ser convertida em prestação de serviços ou mais cestas básicas. Quer dizer, nada de prisão ainda!
Então, quando é que o “ladrão de galinha” vai ser preso? Vamos lá! Se ele subtrair a galinha sem violência ou ameaça ao legítimo dono do animal, terá praticado um furto, cuja pena é de 1 a 4 anos. Será denunciado, mas o processo ficará suspenso, durante certo período. Se, no curso dessa suspensão, o “ladrão de galinha” furtar outra galinha, o primeiro processo retomará o seu curso e será processado também pelo segundo delito. Ao final de cada processo, se for condenado, as penas somadas dos dois crimes não vão nem chegar perto de ultrapassar quatro anos. Então, serão substituídas por prestações alternativas (crime sem violência ou ameaça). Se, dentro de cinco anos contados das condenações defintivas, o “ladrão de galinha” furtar uma terceira ave, aí sim será processado e, se condenado pela terceira vez, correrá o risco de cumprir a pena inicialmente no regime semi-aberto e, finalmente, ir para a cadeia, por ser reincidente. Quanto tempo ficará preso? Bem, se a pena for de novo fixada no mínimo legal de 1 ano, ficará preso, no máximo, por 2 meses, quando já poderá progredir para o regime menos gravoso, ou seja, o aberto.
Quer dizer, o “ladrão de galinha” vai ter que cometer pelo menos três furtos em série e ainda ter o azar de ser flagrado nas três oportunidades. Isso sem contar as hipóteses de prescrição, indulto e outras tantas benesses legais que favorecem os criminosos. E, sinceramente, ainda que furtar galinha seja um crime banal, um sujeito que não consegue ficar um par de anos sem mexer no galinheiro alheio demonstra sua absoluta incapacidade de respeitar os direitos dos seus concidadãos e, por isso, só pode ter um destino, que é a prisão.
Assim como o “ladrão de galinha”, outros criminosos também só com muito custo vão parar na cadeia, como o contraventor, o cafetão, o estelionatário, o falsificador, o receptador e o corruptor de menores, só para citar alguns crimes comuns previstos no Código Penal, cujas penas mínimas igualmente não ultrapassam um ano. Enfim, só fica preso no Brasil o sujeito que comete um crime verdadeiramente grave, como o homicídio (consumado, porque tentado a pena não passa de quatro anos), roubo, extorsão mediante sequestro, estupro, tráfico de drogas, cujas penas mínimas ultrapassam quatro anos, ou é reincidente. Portanto, não me venham com essa conversa fiada de que o sistema penal só serve para oprimir pobres coitados e segregar “ladrões de galinha”. Pode até haver um ou outro condenado injustiçado, mas, no Brasil, na generalidade dos casos, não existe preso santo.
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